sexta-feira, 25 de abril de 2008

Garnier

Uma livraria, um livreiro

Baptiste Louis Garnier, era francês e chegou ao Brasil trazendo um enorme acervo literário. Em 1844, abriu a livraria Garnier, na Rua da Quitanda, 69, depois fincou raíz na Rua do Ouvidor, 71.




Aos poucos a livraria passou a ser lugar de debates entre autores já conhecidos e outros que queriam ter suas obras publicadas. O mediador era um nome conhecido de todos os brasileiros: Machado de Assis.




Nos dias dos debates literários os lugares eram muito disputados. Aquele escritor que tivesse seu texto aprovado por Machado de Assis, saberia que as chances de ter sua obra publicada eram muitas.




Mas, Garnier não era uma unanimidade em adoração. Normalmente enviava as obras que fosse editar para Paris, o que irritava alguns escritores. Outro fator que pesava negativamente em sua imagem era a compra definitiva dos direitos de cada livro editado em sua livraria.




Mesmo com a força do livreiro e seu tino para os negócios, Garnier não conseguiu resistir a depressão política de 1934 e fechou suas portas. Hoje é considerado por historiadores o responsável pelo desenvolvimento editorial brasileiro.




Abaixo um texto que fala sobre Garnier, publicado em outubro de 1893 por Machado de Assis.






Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela
primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Revertere ad
locum tuum -- está escrito no alto da porta do cemitério de S. João Batista.
Não, murmurou ele talvez dentro do caixão mortuário, quando percebeu para onde o
iam conduzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na Rua do Ouvidor 71, ao
pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, à esquerda: é ali que estão os meus
livros, e minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escrituração.




Durante meio século, Garnier não fez outra cousa,
senão estar ali, naquele mesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns anos,
com a morte no peito, descia todos os dias de Santa Teresa para a loja, de onde
regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontrá-lo na rua, quando se
recolhia, andando vagaroso, com os seus pés direitos, metido em um sobretudo,
perguntei-lhe por que não descansava algum tempo. Respondeu-me com outra
pergunta: Pourriez-vous résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que
vous auriez fait pendant cinquante ans? Na véspera da morte, se estou bem
informado, achando-se de pé, ainda planejou descer na manhã seguinte, para dar
uma vista de olhos à livraria.



Essa livraria é uma das últimas casas da Rua do
Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. Não cito os nomes das que se foram
porque não as conheceríeis, vós que sois mais rapazes que eu, e abristes os
olhos em uma rua animada e populosa onde se vendem ao par de belas jóias,
excelentes queijos. Uma das últimas figuras desaparecidas foi o Bernardo, o
perpétuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos charutos do Duque de Caxias, que
tinha fama de os fumar únicos, ou quase únicos. Há casas como a Laemmert e o
Jornal do Comércio, que ficaram e prosperaram, embora os fundadores se fossem; a
maior parte, porém, desfizeram-se com os donos.



Garnier é das figuras derradeiras. Não aparecia
muito; durante os 20 anos das nossas relações, conheci-o sempre no mesmo lugar
ao fundo da livraria, que a princípio era em outra casa, n.° 69, abaixo da Rua
Nova. Não pude conhecê-lo na da Quitanda, onde se estabeleceu primeiro. A
carteira é que pode ser a mesma, como o banco alto onde ele repousava, às vezes,
de estar em pé. Aí vivia sempre, pena na mão, diante de um grande livro, notas
soltas, cartas que assinava ou lia. Com o gesto obsequioso, a fala lenta, os
olhos mansos, atendia a toda gente. Gostava de conversar o seu pouco. Neste
caso, quando a pessoa amiga chegava, se não era dia de mala ou se o trabalho ia
adiantado e não era urgente, tirava logo os óculos deixando ver no centro do
nariz uma depressão do longo uso deles. Depois vinham duas cadeiras.

Pouco sabia da política da terra, acompanhava a de França, mas só o ouvi
falar com interesse por ocasião da guerra de 1870. O francês sentiu-se francês.
Não sei se tinha partido; presumo que haveria trazido da pátria, quando aqui
aportou, as simpatias da classe média para com a monarquia orleanista. Não
gostava do império napoleônico. Aceitou a república, e era grande admirador de
Gambetta.



Daquelas conversações tranqüilas, algumas longas,
estão mortos quase todos os interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo
Joaquim Norberto, José de Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria
era um ponto de conversação e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais
popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma Branco, romance e
comédia que fizeram as delícias de uma geração inteira. Com José de Alencar foi
diferente; ali travamos as nossas relações literárias. Sentados os dous, em
frente à rua, quantas vezes tratamos daqueles negócios de arte e poesia, de
estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste mundo. Muitos outros iam
ao mesmo ponto de palestra.

Não os cito, porque teria de nomear um
cemitério, e os cemitérios são tristes, não em si mesmos, ao contrário. Quando
outro dia fui a enterrar o nosso velho livreiro, vi entrar no de S. João
Batista, já acabada a cerimônia e o trabalho, um bando de crianças que iam
divertir-se. Iam alegres como quem não pisa memórias nem saudades. As figuras
sepulcrais eram, para elas, lindas bonecas de pedra; todos esses mármores faziam
um mundo único, sem embargo das suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal é a
visão dos primeiros anos. Não citemos nomes.



Nem mortos, nem vivos. Vivos há-os ainda, e dos
bons, que alguma cousa se lembrarão daquela casa e do homem que a fez e perfez.
Editar obras jurídicas ou escolares, não é mui difícil; a necessidade é grande,
a procura certa. Garnier, que fez custosas edições dessas, foi também editor de
obras literárias, o primeiro e o maior de todos.




Os seus catálogos estão cheios dos nomes
principais, entre os nossos homens de letras. Macedo e Alencar, que eram os mais
fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo Guimarães, que também produziu muito
nos seus últimos anos, figuram ao pé de outros, que entraram já consagrados, ou
acharam naquela casa a porta da publicidade e o caminho da reputação.



Não é mister lembrar o que era essa livraria tão
copiosa e tão variada, em que havia tudo, desde a teologia até à novela, o livro
clássico, a composição recente, a ciência e a imaginação, a moral e a técnica.
Já a achei feita; mas vi-a crescer ainda mais, por longos anos. Quem a vê agora,
fechadas as portas, trancados os mostradores, à espera da justiça, do inventário
e dos herdeiros, há de sentir que falta alguma cousa à rua. Com efeito, falta
uma grande parte dela, e bem pode ser que não volte, se a casa não conservar a
mesma tradição e o mesmo espírito.





Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as
suas labutações? O gosto do trabalho, um gosto que se transformou em pena,
porque no dia em que devera libertar-se dele, não pôde mais; o instrumento da
riqueza era também o do castigo. Esta é uma das misericórdias da Divina
Natureza. Não importa: laboremus. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas
páginas dos dicionários biográficos. Perdure a notícia, ao menos, de alguém que
neste país novo ocupou a vida inteira em criar uma indústria liberal, ganhar
alguns milhares de contos de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma
sepultura perpétua. Perpétua!




Pesquisa: Roberta Hoth

Texto: Lucas Maia

Um comentário:

PC Guimarães disse...

Lucas
Faltou incluir a imagem que mandei em anexo.